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IMPORTANTE

 

Este livro engloba o real e o fictício. Elementos políticos e históricos como conhecemos hoje podem ter sido alterados para desfecho da trama. Visando imersão no universo do Legado, locais famosos e pessoas sofreram leves alterações, assim, o leitor captará a ideia sem infringir leis de direitos autorais. Nenhuma marca é citada de forma negativa, apenas são colocadas por representatividade e por sua importância na cultura e na humanidade nos dias modernos.

 

Exemplo: Burguer Queen, Loix Vuitton, Paecebook…

 

O livro contém conteúdo não recomendado para menores de dezesseis anos, há violência explícita que pode ocasionar gatilhos em algumas pessoas mais sensíveis a certos temas.

Outro ponto a ser ressaltado ao leitor é que no livro os personagens têm como idiomas principais o grego e o grego antigo, embora alguns conheçam outros idiomas.

Caso haja dúvidas sobre personagens, como deuses e titãs, conhecimento mitológico e histórico em geral, é indicado a você, leitor, que conheça o site www.mitologiagrega.info — um site criado pela sociedade Kosmos BR com toda a informação mitológica disponível ao nosso alcance. Ele está sendo constantemente atualizado com mais e mais informações.

Acesse o Instagram (@legadogrego) para se manter atualizado frente ao futuro da saga. Tenha uma ótima leitura, com muita imersão e emoção.

 

 

 

 

 

 

ENGRENAGENS DO DESTINO

 

Local: Antártida

Data: 16 de abril de 2008

 

— Este garoto não é o seu passado, ele é seu filho e precisa da mãe — uma deusa encapuzada, cujos cabelos ruivos voavam ao vento graças à fria brisa do local, disse para uma deusa de cabelos brancos, pálida como a neve, que estava diante dela. A sua pele era fracamente iluminada pela luz do dia nublado do vasto campo de gelo puro no qual ela se encontrava. O vestido e o capuz branco indicavam a importância daquela deusa: ela era uma divindade reclusa, que um dia teve uma grande importância no cosmos.

A deusa de cabelos brancos vestia um sobretudo de couro de urso polar, calças de couro da cor preta e botas igualmente de couro preto. Seus olhos eram de cor cristalina, lembravam flocos de neve que caíam do céu durante uma vasta tempestade e refletiam a sensação que a deusa sentia em seu coração naquele momento: uma vastidão de emoções reprimidas por sua natureza fria. Ela era chamada por muitos pelo título “Despoina”.

 — Ele não está pronto! — Despoina afirmou para a deusa encapuzada com tom de irritação na voz.

— A sua natureza luta dentro do garoto neste exato momento; a verdadeira natureza dele vai se revelar, e quando isso acontecer, será tarde demais — a deusa dizia enquanto caminhava atrás de Despoina.

As deusas estavam no meio do mar da Antártida, e por onde a deusa de cabelos brancos passava, a água congelava a metros de distância pela presença divina que emanava de seu corpo.

— O Olimpo colapsou, e devido às consequências do Caos, você foi uma das divindades que, depois de muitos séculos, teve a oportunidade de entrar em fertilidade, dar à luz, sua esterilidade foi curada!

A olimpiana se apressava para chamar a atenção daquela divindade, que parecia, pela primeira vez em toda sua existência, indecisa sobre o que fazer.

— Você entende o que significa? Outros também tiveram filhos, o clima no mundo divino é incerto, e os semideuses certamente serão mais uma vez peões nesse embate que já começou. Seu filho precisa da mãe agora! Antes que seja tarde demais! Temos apenas onze anos sobrando antes da guerra começar! — A deusa de cabelos ruivos caminhava até passar na frente da deusa do gelo, que a respondeu de imediato:

— Tenho muitos inimigos, travo impasses há anos com os quatro ventos. Meu pai, Poseidon, me detesta, assim como minha mãe, Deméter. Eles jamais perdoariam uma criança nascida de mim, meu filho não pode se envolver com o nosso mundo. — A deusa do gelo parou e olhou fundo nos olhos da deusa encapuzada.

 — Despoina, por favor, se seu filho não estiver a salvo com você, com quem estará? Não poderei protegê-lo, já fiz meus sacrifícios, não vou deixar a tragédia se repetir mais uma vez. — A deusa encapuzada cerrava os punhos conforme lágrimas se formavam em seus olhos, sua íris vermelha brilhava na esperança de que a deusa do gelo compreendesse a gravidade da situação na qual se encontravam.

— Meu filho não sofre ameaça alguma, ele não possui sangue divino o bastante para ser notado pelos deuses ou pelos mediarios. — Os olhos cristalinos, que lembravam gelo e neve, frios, entravam em uma ligação única e desafiadora com os olhos vermelhos e flamejantes da deusa encapuzada.

Quando os olhos de ambas se encontraram, uma guerra de forças de vontade foi travada, como animais selvagens quando se encontram na natureza; aquela que tivesse maior determinação venceria o impasse sem o uso da agressão. E ali os olhos cristalinos gélidos da deusa do inverno colidiram contra os esperançosos olhos flamejantes daquela deusa que preferia não ter sua identidade revelada, embora Despoina soubesse quem ela era.

A deusa ruiva deu um passo à frente, Despoina não recuou, mas permitiu o avanço, ela estava determinada a impor sua força de vontade sobre a deusa do inverno.

— Você subestima sua natureza, subestima o sangue olimpiano que corre nas veias do seu filho. Acredite em mim: dê as costas para ele agora e não só o passado te assombrará, mas o presente e o futuro também. Tenha quantos inimigos quiser, eu repito, Ikarus não faz parte do seu passado, ele é o seu presente. E o futuro do seu nome em nosso mundo — a ruiva falou com uma voz autoritária, deixando claro o quão determinada estava em suas ações.

Despoina, ao ouvir tais palavras, relembrou brevemente da sua vida no cosmos. Ela era filha biológica de Poseidon e Deméter. A deusa da agricultura no passado procurava por Perséfone, sua filha, que havia sido raptada por Hades. Quando Deméter percebeu que Poseidon, o deus dos mares, estava atrás dela, transformou-se em uma égua para fugir dele. Poseidon a encontrou, assumiu a mesma forma equina e a estuprou, mesmo sendo sua própria irmã, deixando-a grávida.

 

(...)

 

Deméter, enojada de seu irmão Poseidon, decidiu renegar as crianças que cresciam em seu ventre e, assim, deu à luz prematuramente em uma caverna na qual ela estava, solitária, lamentando o rapto de sua primogênita Perséfone.

De seu ventre, duas crianças nasciam: uma pequena deusa, pálida, que nem sequer chorou, e um pequenino potrinho igualmente branco, nascido da forma divina equina que Deméter e Poseidon assumiram.

Devido à fúria que sentia, à depressão pela perda de Perséfone e pela dor da segunda violação seguida que sofrera, a deusa achou necessário descontar a frustração de alguma forma.

Deméter decidiu punir as crianças. Ela não conseguiria matá-las por serem imortais, mas amaldiçoava-as com toda sua força de vontade. A deusa da agricultura tornou sua filha estéril ao colocar a mão no ventre da recém-nascida, em seguida a amaldiçoou ao decidir abandoná-la sem um nome. Deixou também o potrinho e, assim, saiu da caverna, na esperança de que eles nunca vissem a luz do dia.  

O deus equino, criou seis asas devido ao esforço que fez para conseguir sair do buraco, pegou a irmã que chorava em dor, mordeu o braço da deusa bebê e colocou-a sob suas costas. Mesmo fraco e prematuro, esforçou-se para salvar a própria irmã. Assim, fugiu da caverna, chorando junto de sua irmã, ambos em busca de alimento, abrigo e alguém que cuidasse deles.

Os recém-nascidos foram encontrados por Themis, ela era um dos titãs primordiais, com seu domínio divino sendo o da lei natural, justiça e ordem. Themis foi a primeira noiva de Zeus, e posteriormente, quando o rei se casou com Hera, a titã tornou-se conselheira dele.

Themis, entristecida e com o coração partido pelo que Deméter havia feito, decidiu cuidar das crianças em segredo. Adotou-as como se fossem suas, amamentou-as e as criou.

A titã, na esperança de que a pequena deusa seguisse o caminho da justiça, decidiu dar a ela um nome que lembrasse o seu: “THEMINARIS”, um nome que ficou em esquecimento, pois pouquíssimos mortais sabiam, chamando-a apenas de DESPOINA ou, para alguns, DESPINA. E ao potrinho alado, que nasceu com seis asas em seu corpo, chamou de Arion, um deus equino que também não foi muito lembrado pelos mortais, senão pelo fato de que, certo dia, Hércules, um herói, veio a tomá-lo e domá-lo, transformando-o em sua montaria.

Despoina cresceu com problemas de equilíbrio, instabilidade de seus dons divinos e a ira que sentia. Em determinado momento, não podia mais ser contida pela sua mãe de criação Themis, assim, a deusa cresceu com uma esfera ou inclinação divina rara, sendo a esfera de poder primária, o gelo, pelo desejo de ser mais forte que seus pais; e a secundária, as sombras, por ter nascido na escuridão e sempre estar acompanhada da mesma. Milhares de anos depois, os mortais gregos a cultuaram como uma deusa dos mistérios.

Como uma divindade nascida de dois olimpianos, Despoina tinha direito de nascença a um lugar no Olimpo menor, junto aos deuses menores, que não faziam parte do conselho dos doze olimpianos; mas Despoina foi amaldiçoada a ficar nas sombras, abandonada sem um nome em seu nascimento: até mesmo o nome que Themis havia dado a ela foi impedido de ser pronunciado, para não trazer desonra a Poseidon e Deméter.

Despoina era temida por todas as criaturas marítimas e da natureza, pois seu frio era destrutivo, sua essência divina existia para acabar com os domínios agrícolas de sua mãe Deméter e congelar os domínios do seu pai Poseidon.

Poseidon e Deméter, ao obterem conhecimento dos domínios divinos da filha renegada, buscaram destruí-la, pois seu poder colocava em risco os domínios deles. Assim, Despoina, reclusa, sem nunca poder pisar em solo olimpiano, jurou dedicar sua existência a destruir tudo que seus pais adoravam, viveu movida por vingança e, durante sua trajetória, fez muitos inimigos que eram aliados de seus pais.

 

(...)

Ali estava Despoina, de frente à divindade encapuzada, enfrentando uma difícil decisão entre deixar o passado de vingança de lado, pelo bem do próprio filho, que tinha apenas oito anos, ou seguir com seus planos esperando que o filho ficasse em oculto, sem que outros deuses notassem sua existência: algo que, no fundo, ela sabia que não seria mais possível.

A força de vontade que a deusa ruiva colocou em sua ação fez com que Despoina se sentisse obrigada a começar a ceder e ouvi-la, afinal, ela escondia segredos que podiam mudar o destino do cosmos.

— Ikarus já nasceu manifestando seus dons, ele cresceu com seus cultistas o ensinando que ele não é um mero humano. Se ele não estivesse correndo riscos, por que o tirou da Grécia e o enviou para a Rússia? Para uma vila de pescadores... não seja tola! — a divindade repreendia a deusa do inverno, que abaixava o olhar, pensativa.

 

Despoina sentia um pressentimento crescendo em seu peito.  

— Semideuses já estão sendo recrutados por ambos os lados do Olimpo, alguns até mesmo contra a vontade. Eu só consigo imaginar o pior acontecendo caso algum dos aliados de Zeus ou de seu pai encontrem seu filho — a deusa ruiva continuou.

Ela colocava uma mão no ombro de Despoina enquanto, com a outra, entrelaçava seus dedos aos da mão da divindade do inverno.

— Despoina, eu já te disse tudo que sei. Vá buscar seu filho agora. Viaje com ele, ensine-o a se proteger, cuide dele, e quando completar a maioridade mortal, envie-o ao cosmos para que decida o próprio destino. — A deusa ruiva pressionava Theminaris usando uma voz pacífica, carregada de amor e empatia, apertando sua mão e ombro.

— Isso é contra a regra estabelecida pelos deuses, não podemos conviver com os humanos, muito menos com filhos mortais — Despoina respondeu com o olhar fixo na vastidão do campo gélido que ela havia criado sob o mar.

— Os tempos mudaram, estamos à beira do precipício. Uma guerra travada por manipulações está prestes a começar, e isso mudará para sempre o curso da história do cosmos, dos humanos e dos deuses. Não há como voltar mais, a profecia já foi feita — a deusa encapuzada dizia enquanto lágrimas começavam a rolar de seus olhos por todo seu belo rosto. Ela tinha uma natureza pacífica, e por isso sentia o peso da guerra sobre seus ombros, o que estivesse ao seu alcance seria feito se fosse para salvar.

Ouvindo isso, junto de uma lufada de vento carregada de neve, Despoina gritou irritada com a ruiva:

 

— QUERO POUPAR MEU FILHO DESTE MUNDO DIVINO HIPOCRITA!!

 

Ela entendia o ponto de vista da divindade, mas não podia concordar. O nascimento de Ikarus havia feito a deusa do inverno experimentar uma emoção que nunca sentiu antes: esperança. Despoina estava feliz, tinha vontade de continuar vivendo por algo que não fosse vingança ou destruição e, por isso preferia amá-lo de longe, vendo-o crescer por etapas, a metros de distância, invisível aos olhos do menino: tudo pela segurança dele. O mundo divino já havia tirado muito de Despoina, bem antes de ela poder ter ou conquistar algo; uma brecha no destino a permitiu ter um filho, e ela não deixaria que nada nem ninguém fizesse mal algum ao semideus.

— As regras já foram quebradas, regras do destino e da ética divina. Você recuperou sua fertilidade graças às brechas do mundo divino que foi abalado, então quebre as regras, Despoina, mantenha seu filho seguro até que ele mesmo consiga se proteger; eu vou esconder vocês com minha presença se necessário. Salve seu filho — ela falou, aflita, na esperança de que Despoina aceitasse sua proposta.

A deusa do inverno não compreendia o porquê de a olimpiana estar tão abalada ou por que se preocupava tanto com uma mera deusa do inverno, esquecida pelos deuses e renegada pelo Olimpo.

— Não preciso da sua ajuda! Mas por que me ajudar? — Theminaris questionou a deusa, irritada. Sua voz demonstrava que se sentia superior à ruiva e que não precisava de proteção alguma.

— Porque é assim que eu sou, não fui abençoada com filhos, mas com uma eterna prisão — ela disse.

A deusa ruiva, no passado, foi alvo de cortejos de Zeus e de muitos outros deuses, mas preferiu a castidade eterna a sofrer abusos e casamentos forçados. Ela se refugiou, escondendo-se e ficando em esquecimento aos deuses.

A divindade olhava dentro dos olhos de Despoina e algo incomum acontecia. A deusa do inverno entrou momentaneamente numa espécie de transe. A encapuzada estava compartilhando visões com Theminaris, e aquilo confirmou a aflição que a deusa do gelo sentia, libertando-a assim de dúvidas. A ruiva se aproximou mais alguns centímetros da deusa, que estava incrédula com tudo que havia visto e, numa voz baixa, quase inaudível, sussurrou conforme as lágrimas rolavam de seu rosto:

 

— Está acontecendo tudo de novo.

 

Despoina, se não fosse pálida por sua natureza divina, teria ficado após tudo que viu nos olhos daquela deusa pacifista, que também fora excluída do meio dos olimpianos. Havia muito a ser feito, em poucos anos uma guerra começaria, e devido a isso, ela decidiu se apressar, afinal, não iria abandonar seu primogênito como fizeram com ela no passado.

Aquela deusa encapuzada estava se ocultando de todas as outras divindades por um motivo específico. Ela sabia demais, sabia de segredos que nenhum outro ser no cosmos tinha ciência. E agora, Theminaris entendia o porquê.

O FILHO DO INVERNO

 

Local: ???

Data: ???

Horário: ???

 

Ikarus, um pequeno semideus, filho da deusa do inverno, encontrava-se caído no chão. O garoto não sabia onde estava, mas sentia como se estivesse em um coliseu, um campo de luta dos romanos das histórias e aulas que seu pai e avó o davam.

Holofotes iluminavam a sua pele, que lembrava a neve do inverno. Os cabelos cacheados estavam bagunçados, e sangue escorria de sua cabeça até os fios brancos dos cachos. Seus olhos cristalinos lembravam as finas camadas de gelo que se formavam em superfícies no inverno quando iluminadas pela luz solar.

O pequenino de apenas oito anos cerrava os dentes, irritado por estar com medo. Durante toda sua vida, foi proibido de fraquejar por aqueles que o criaram, mas o terror que estava vivendo em sua pele fazia suas emoções, que sua frieza emocional tentava encobrir, transbordarem por meio de lágrimas e soluços.

O garotinho se levantou do chão e começou a correr pelo pátio em busca de cobertura, refúgio. Ikarus tentava gritar, pedir por ajuda, mas a voz não saía, todas as suas súplicas e gritos estavam entalados em sua garganta.

Conforme corria, os holofotes o acompanhavam, como se fosse filmado ou como se estivesse em um show; vozes podiam ser ouvidas do que parecia ser uma arquibancada que ficava logo acima dele.

 

BA-TUM-BÁ-TUM-TUM...

 

O coração do jovem semideus pulsava, quase saía por sua boca. Ikarus não conseguia se manter calmo, as vozes na arquibancada clamavam por sua morte e, agora, uma imensa sombra emergia atrás do semideus; o olfato aguçado do pequeno detectou um cheiro podre, que lhe dava náuseas.

Uma criatura, que ele tinha certeza de que era do tamanho de um poste de luz, ou até maior, o seguia. O instinto assassino daquele monstro podia ser sentido por todos, principalmente pelo corpo do garoto. Ele sentia também calafrios e espasmos musculares percorrendo seu corpo, como se fossem explodir em ansiedade.

O peso de toneladas que aquela criatura tinha causou um tremor no solo, e Ikarus percebeu. Ele não conseguia controlar a velocidade das próprias pernas, perdia o equilíbrio e caía no chão, rolando até bater na parede que ficava na extremidade do pátio de combate. O semideus tentou se levantar, mas a presença daquela criatura o paralisava. Ele não conseguia discernir que tipo de monstro ou criatura era aquela; o medo, as lágrimas, a tensão do momento faziam a sua visão ficar turva, como se tudo estivesse envolto em névoa. As asas do monstro se abriram, os olhos vermelhos caóticos cintilavam. Ele levantou uma pata e, com a ponta de sua garra, atacou o semideus.

Ikarus mal teve tempo para pensar, apenas viu a névoa que envolvia a criatura se mover. A grande garra da criatura se estendeu em um golpe perfurante; Ikarus queria chorar, pedir ajuda ao pai, à sua avó ou até mesmo à sua mãe, mas não havia ninguém ali.

Ele soltava o ar num grito abafado, via seu sangue voando para todos os lados: a garra da criatura havia destroçado o seu torso por completo, atravessado todos os órgãos, coração, rins, pâncreas, fígado, intestino, estômago... como se fossem feitos de papel.

Tudo escurecia. Ikarus sabia o que havia acabado de acontecer: a morte o levou, e a última coisa que viu antes de morrer foi o sorriso largo, psicótico e repleto de dentes pontiagudos da criatura que se aproximava para devorar a sua cabeça.

 

— Cof, cof, cof, ahh, ah!!!

 

Ele acordou do pesadelo, tossindo, dando gritos abafados. Tocava o próprio peito, para ver se ainda estava vivo; suas pernas estavam trêmulas e seu coração batia tão forte que o som parecia ensurdecer sua audição. O olfato aguçado do garoto lhe dizia que estava em sua casa, seguro, e o cheiro podre não estava mais lá.

Os olhos cristalinos do pequeno semideus percorriam por todo o quarto. O ambiente era iluminado apenas pela lua nova que brilhava no céu; os raios de luz atravessavam a janela, revelando alguns soldadinhos, uma espada de madeira, livros de contos, histórias, filmes e até mesmo cartuchos de videogames, alguns espalhados pelo chão, outros organizados em prateleiras.

O garoto se lembrava dos ensinamentos da sua avó: “Se estiver com medo, procure respirar fundo”, e assim o fez. O pequeno se sentou e encarou os flocos de neve que caíam do céu. Ele não conseguia se lembrar direito do que sonhou, mas sabia que era horrível. De alguma forma, o corpo dele se lembrava: um cheiro podre, dor no peito, aquilo era estranho para ele.

Mais uma vez, a visão do menino percorreu o quarto em que estava. Ele percebeu algo que o fez se assustar: deparou-se com uma silhueta que se moveu por entre as sombras, caminhando rumo à luz da lua que atravessava a janela do quarto localizado no segundo andar da casa de madeira. Aquela presença lhe era familiar, mas não a reconhecia. O menino, apesar de nervoso, tomou fôlego nos pulmões, permitindo que o oxigênio os adentrasse, e encheu-se de coragem.

 

(...)

 

Local: Rússia/Oymyakon

Data:  16 de abril de 2008

Horário: 2 horas

 

— Q-quem é você? — perguntou em tom baixo, atento a qualquer sinal de agressividade da figura que apareceu em seu quarto em plena madrugada.

O ser, até então desconhecido, revelou-se como uma mulher alta, de um metro e oitenta e cinco. Conforme caminhava em direção a Ikarus, a luz do luar a iluminava: a pele clara como a neve brilhava ao receber os raios lunares. Ikarus sabia quem ela era, mesmo sem nunca ter visto a deusa; a agitação que sentiu pela presença dela logo se foi, deixando apenas o misto de calmaria e proteção.

— Você sabe quem sou, Ikarus, está com medo? — A deusa de cabelos brancos ondulados parou em frente à cama do semideus. Despoina observava o cabelo cacheado de seu filho, quase idêntico aos fios ondulados que ela tinha.

Os olhos frios da divindade fitavam cada centímetro de sua prole, adorando a criança que ela havia colocado no mundo. O semideus sabia que aquela deusa era a mãe dele. O pequeno balançava a cabeça em negação, respondendo, assim, à pergunta de sua mãe. Ele não estava com medo.

— Ótimo, preciso que me escute com atenção e me obedeça, certo? — a deusa falava, sua voz gélida fazia o semideus redobrar a atenção. Despoina colocava ambas as mãos dentro de seu sobretudo de pele de urso polar.

Ikarus se manteve em silêncio. Os olhos cristalinos do pequeno fitavam a mãe; às vezes ele desviava o olhar envergonhado, mas voltava a fitar, curioso, ainda que com um pouco de receio, afetado pelo pesadelo que teve há poucos minutos.

— Humanos estão invadindo sua casa neste exato momento. São bandidos, algo comum de se acontecer em vilas pobres como esta. Você precisa fugir, eu já estou vindo te buscar. — Despoina estava preocupada, embora não demonstrasse isso para seu filho.

— Mas e quanto ao meu pai e minha avó? — Ikarus questionou, ele não iria fugir sozinho; deixar sua família não era uma possibilidade para o pequeno, que era leal àqueles que cuidaram dele desde o nascimento.

Despoina caminhou até a beirada da cama do semideus e colocou a mão no rosto dele, que não estava contente com a ordem da mãe. A deusa, ao perceber as emoções de seu filho, foi obrigada a repreendê-lo.

— Não são sua verdadeira família, eles são meus cultistas, vão ficar bem. Do contrário, estão preparados para morrer para te dar a chance de viver. Não faça o sacrifício deles ser em vão, levante-se e corra para a floresta, agora. — Despoina estava impondo sua vontade sobre o semideus, que entendia a gravidade pelo tom de voz de sua mãe, embora não entendesse o que ela quis dizer com “não são sua verdadeira família”.

Ikarus concordava com a cabeça, em silêncio. Havia tantas coisas que ele queria perguntar para a deusa; mas, antes que o semideus pudesse dizer algo, ela levou a outra mão até o rosto do pequeno e apertou gentilmente. Aproximando-se dele, a deusa fitava os olhos de seu filho, e em um sussurro, que penetrou a mente do garoto como uma flecha, ordenou:

 

— Agora, acorde, Ikarus.

 

O semideus acordou, caindo no chão de seu quarto, ouvindo barulhos na porta da frente da casa.

 — Eu sonhei com um... monstro, e... minha mãe... no mesmo sonho? — o garoto perguntou-se confuso; estava tonto, como se tivesse acabado de ser girado no ar pelo seu pai em brincadeiras. Caído no chão, o semideus olhava para o teto, buscando concentração para se levantar, e novamente outro barulho pôde ser ouvido. 

No andar de baixo, a porta da frente da casa do semideus havia acabado de ser arrombada por um grupo de homens armados. Os olhos de Ikarus vidravam ao ouvir o estrondo, vidros pareciam serem quebrados, um cheiro de fumaça, como se algo estivesse queimando, subiu ao olfato aguçado do semideus. Ikarus ouvia algo:

 

— Fuja!

 

Uma voz roubava o espaço dos pensamentos do semideus, ordenando-o entrar em fuga. Era a voz de sua mãe. Ikarus chegou naquele mesmo instante à conclusão de que não fora apenas um sonho, algo de ruim estava acontecendo, ele precisava fugir. O semideus se levantou do chão, levou a mão até a maçaneta do quarto e abriu — a porta não queria abrir, sendo necessária muita força para puxá-la. Ele ouvia gritos e sons de móveis sendo quebrados, um pequeno choque percorreu por todo seu corpo, como se estivesse pegando o caminho errado de sua rota de fuga.

— Quem são vocês, seus filhos da puta! — Elliot, o homem que desempenhava a figura paterna da criação de Ikarus, perguntava enquanto apontava um revólver em direção aos invasores.

O homem era forte e, mesmo na situação que se encontrava, mantinha sua postura imponente. A barba cheia e grisalha junto do olhar sanguinário mostravam a natureza daquele homem: era como um urso protetor que se erguia contra invasores. Infelizmente, Elliot não pôde atirar para matar; pois, se fizesse isso, sua mãe poderia acabar sendo morta, já que havia sido feita de refém.

Ikarus conseguia ouvir a voz de seu pai. O semideus se abaixou e do segundo andar olhou para o primeiro, para ver do que se tratava aquela invasão; todos os intrusos usavam máscaras pretas e carregavam armas de fogo, estavam muito bem agasalhados para o frio de Oymyakon. Mesmo Ikarus sendo apenas uma criança, era muito esperto, e sabia que aqueles homens não eram meros bandidos.

— Não é nada pessoal, amigo. São apenas negócios! — o bandido gritou, este parecia ser o líder. O invasor se encontrava na frente de Elliot, apontando uma espingarda de caça em direção ao peito dele.

Próximo à cozinha, havia um homem jogando líquido pelos móveis de sua casa com um galão; pelo cheiro, Ikarus pôde identificar que se tratava de gasolina. O objetivo daquele invasor era atear fogo, para não deixar evidências do crime.

Aquilo era péssimo, pois a casa deles ficava muito afastada do resto das casas do povoado de Oymyakon, então, se um incêndio ocorresse, a ajuda demoraria muito para chegar.

— Mate-os logo, Elliot, não coloque tudo em risco! — Helena, a mulher que desempenhava o papel de avó de Ikarus, gritou.

Um dos bandidos estava forçando a senhora contra o chão. Ver sua avó, que tinha mais de setenta anos, sendo humilhada daquela forma fez o semideus cerrar os dentes, irritado. Ikarus queria fazer algo para ajudar; pensou em pegar um vaso da decoração e arremessar do segundo andar, ou então pular em cima de um deles, mas, devido ao treinamento que recebeu de Elliot, soube que impulsos emocionais podiam ser fatais em momentos de vida ou morte. O pequeno pensou:

 

“Mantenha-se frio.”

 

Sem pensar duas vezes, Ikarus corria de volta para seu quarto, indo em direção à janela enquanto ouvia os sons de Elliot gritando com os invasores: pareciam estar lutando. O semideus forçava o corpo contra a janela de madeira, que se abria por completo; em seguida, olhou para baixo, calculando o quão alto seria a queda em sua tentativa de fuga.

 

Dez metros, no mínimo.

 

Ikarus respirava fundo, determinado. Ele não iria fugir, não podia deixar sua família; aquelas pessoas iriam pagar por quebrar sua casa, ameaçar Elliot e maltratar sua avó.

— Eu não sou humano, sou um semideus, a neve me protegerá! — o pequeno falou para si enquanto subia no vão da janela; os flocos de neve entravam para dentro de seu quarto dançando junto ao vento que tocava seus cachos brancos.

“Eu não sou humano”, repetia para si. Ikarus cresceu sabendo que era um semideus, sendo treinado pelo pai, educado pela avó, era mais rápido e mais forte que um humano comum.

E, assim, fechou os olhos; enchendo-se de coragem, pulou da sacada de sua casa. Os flocos de neve dançaram em volta do corpo do semideus em queda, como se abraçassem o garoto. A noite invernal de Oymyakon era uma das mais frias do mundo, a madrugada era sombria e densa, e a única fonte de luz era a lua. Ikarus sentia a adrenalina percorrendo por todo seu corpo enquanto a neve no chão ficava mais próxima, mas não sentia medo algum, afinal, ele possuía a frieza emocional de sua mãe.

 

PLOFT!

 

A neve recebia o corpo do semideus como uma mãe que recebe o abraço de um filho correndo desgovernado ao encontro dela. Ikarus sentiu como se houvesse caído de apenas centímetros de altura, rapidamente se levantou e começou a correr.

Para muitos, locomover-se na neve, principalmente em amontoados dela, era algo cansativo, mas para Ikarus era como uma caminhada simples; o semideus não usava blusas, jaquetas ou botas, apenas um fino pijama, pois era comum para ele caminhar na neve sem calçados. Ikarus Kaice não sentia frio.

— O que eu faço? Preciso ajudar! — o garoto murmurava enquanto caminhava para a janela da sala de sua casa.

— Pare com isso! Deixe-nos em paz! — A voz de Helena pôde ser ouvida por Ikarus, o semideus apressou-se para ver o que estava acontecendo.

 

BLAM! BLAM!

 

Dois tiros consecutivos. Ikarus olhou pela janela e viu seu pai, Elliot, baleado no chão; o sangue corria lentamente no piso de madeira de sua casa. A avó de Ikarus era amordaçada; os bandidos riam, faziam perguntas para Helena, mas o semideus já não conseguia mais raciocinar sobre o que estavam falando.

Um sentimento destrutivo e vingativo nascia dentro do coração daquela criança. Ikarus, do lado de fora da casa, encarava fixamente pela janela o corpo de Elliot caído no chão. Conforme o sangue escorria, ouvia e via sua avó paterna, que estava amarrada no chão, chorando pela morte de seu filho, preocupada com o neto, sem nada poder fazer.

A temperatura de Oymyakon no inverno por si só já era extremamente fria, mas, naquele momento, a temperatura ao redor da casa da família de cultistas diminuía gradativamente, os vidros da janela começavam a formar grossas películas de gelo puro.

O semideus manteve-se petrificado com a morte de Elliot, as lágrimas rolavam em seu rosto e congelavam logo em seguida. O sentimento sombrio no coração de Ikarus o dominava, até que, por fim, tudo ficava escuro. O semideus agora teria suas ações guiadas pela vingança.

 

(...)

 

VRAMMM-BRAM-BRAM-BRAAM-VRUMMMM

 

Poucos minutos se passaram até que o som de uma motosserra pôde ser ouvido por todos que estavam na sala da casa; os bandidos entreolharam-se, e antes que pudessem perceber, uma pequena criança entrou correndo pela porta da frente, carregando uma motosserra que era do mesmo tamanho, ou até mesmo maior, que a altura da criança. A máquina de cortar lenha do pai de Ikarus pesava mais de oito quilos, mas, naquele momento, não possuía peso algum nas mãos daquela criança possessa pela ira.

— Mas que porra? — um dos invasores murmurava enquanto via o garoto correr em sua direção em uma velocidade incomum.

 

VRAAAMMMM SLAASHHH BRAM-BRAM...

 

Ikarus desferiu um golpe lateral com a serra, acertando o abdômen do primeiro invasor. Os dentes da motosserra engoliam a blusa, colete e roupas do homem até chegar à carne, que era dilacerada brutalmente. Sangue voava para todos os lados da sala, o rosto inexpressivo, frio e pálido de Ikarus era pintado pelo vermelho sangue das vísceras que caíam no chão da sala.

— Matt! Caralho! Peguem o merdinha com vida! — o líder dos invasores gritou pelo comparsa que, ao tentar fugir da ira de Ikarus, teve mais de suas vísceras espalhadas pela sala.

O homem até tentou fugir, mas a perda de sangue e o terror de ver o próprio intestino caindo para fora do corpo o fez desmaiar, e em poucos instantes a morte o abraçou.

O semideus era rápido, flexionava as pernas e pulava subindo em cima do sofá. O pequeno correu com a serra em mãos, como se fosse feita de papel e, ao chegar na ponta do sofá, saltou para cima da mesa da cozinha, que ficava próxima: Ikarus caçaria sua segunda presa, o que estava jogando gasolina nos móveis de sua casa.

— N-Não!... — gritou, levantando o galão de gasolina em frente ao corpo para se proteger.

Ikarus jogou a motosserra para trás do corpo e desferiu um golpe vertical que dilacerava o galão, para então acertar precisamente a clavícula do segundo invasor. O garoto apertava com toda sua força o botão da serra.

 

VRAAAAMMMMMM!!!

 

A carne era obliterada, o osso da clavícula daquele invasor foi partido como um graveto. Ikarus forçava a máquina, que adentrava impiedosamente o tronco do criminoso; o terror do homem era amplificado pela expressão fria de Ikarus; os olhos do semideus estampavam o caos que sentia.

— O filho da puta matou o Anderson, cacete! Sua aberração! — o terceiro invasor gritava, puxando os pés de Ikarus de cima da mesa, derrubando-o no chão.

A motosserra caiu ligada logo ao lado do pequeno, que lutava para se soltar do agarrão do invasor.

— Vou arrancar esses seus olhos, seu bostinha! — o terceiro invasor dizia colocando os polegares dentro dos globos oculares de Ikarus, que lutava para impedir que seus olhos fossem estourados ou afundados para dentro do crânio.

— Desmaia esse filho da puta! Merda! Fizemos muito barulho, David! Precisamos ir embora e levar ele agora! — o líder dizia para seu comparsa, mirando uma escopeta na direção dos dois que estavam lutando no chão.

Ikarus precisava se soltar, o homem em cima dele era muito pesado. O pequeno abriu a boca e mordeu o pulso de seu agressor com tanta força que suas veias foram rompidas e sangue começou a jorrar.

— ARGH, CARALHO! — gritou, em seguida desferiu um soco no nariz de Ikarus, que, por um segundo, viu tudo ficar escuro.

O semideus não perdeu tempo, aproveitou a abertura e se esticou para segurar o cabo da motosserra com suas pequenas mãos. O invasor tentou impedir Ikarus, mas ele foi mais rápido, girou o corpo em alta velocidade, impossibilitando desviar de seu golpe. Os dentes da motosserra acertaram o pescoço do agressor de Ikarus, rasgando, assim, o pomo-de-adão, artérias e veias, fazendo o sangue jorrar novamente para todos os lados. O semideus aplicava mais força, e em menos de cinco segundos decapitou o terceiro invasor.

A avó de Ikarus olhava assustada, preocupada com o neto. Helena não conseguia falar, pois estava amordaçada, mas lutava para se libertar. O último invasor mirou a arma na direção do semideus; ele tremia, apavorado, pois nunca imaginou que veria tamanha ferocidade vindo de uma simples criança. O banho de sangue que havia sido feito até então assustaria qualquer um.

— Você realmente é uma aberração, moleque. Não vou me sentir culpado por matar você — o homem dizia com a mão trêmula.

De alguma forma, Ikarus exalava uma pressão espiritual amedrontadora de forma inconsciente. O pequeno semideus estava decidido a empenhar toda sua força de vontade para matar.

O líder invasor apontou a arma em direção à cabeça do semideus, que estava a poucos metros de distância. Ikarus acelerava o motor da motosserra: o semideus teria de ser rápido, pois já sentia o peso da máquina esgotando seus músculos.

Os segundos pareciam durar uma eternidade, o invasor colocava o dedo no gatilho da arma. Helena, no chão, amordaçada, tentava gritar para que o neto fugisse ou fizesse algo para não ser morto, a tensão do momento fez os sentidos de sobrevivência do semideus se aflorarem. Ikarus gritava em ira:

 

— VOU TE MATAR POR FERIR MINHA FAMÍLIA!!!

 

O lado divino do semideus o dominava, o sangue destrutivo de Despoina ansiava por vingança. Helena, ao ouvir as palavras de seu neto, não se conteve, derramando lágrimas de tristeza por ver o descontrole dele. A ternura humana que seu amado neto tinha se esvaía pelo desejo de destruição. O invasor sentia na pele o perigo, a vida dele estava por um fio, então não se importou, mirou a escopeta na direção do semideus e apertou o gatilho.

O tiro de uma escopeta era mortal quando efetuado em alvos próximos, pois o dilaceramento era bem maior. Ikarus viu o homem apontando a arma na sua direção, levantou a motosserra para se proteger enquanto corria, sem se importar em ser atingido.

O tiro acertava a lâmina da motosserra e, assim, as balas eram redirecionadas. Ikarus havia aparado o tiro por meio de seus reflexos. O homem piscou, e o tempo parecia congelar conforme a distância entre Ikarus e o invasor diminuía.

Três segundos. Ikarus mantinha a motosserra erguida, mirando no tronco do bandido a sua frente, o som da corrida dos pequenos pés do semideus no chão de madeira era ensurdecedor para o homem que tentava encontrar uma brecha para matar o semideus.

Dois segundos. O invasor, inconscientemente, por medo da morte, apertou novamente o gatilho de sua escopeta. O tiro era desajeitado, ainda assim, a trajetória dele pegava de raspão o ombro do semideus; o sangue de Ikarus voava, mas ele nem sequer piscou pela dor que sentiu. O semideus saltou com a motosserra em mãos.

Um segundo restante. O invasor pensava se havia realmente valido a pena a vida de crime. Foi contratado para roubar uma casa e sequestrar um garoto, não esperava encontrar um demônio em forma de criança. Ele via os olhos vidrados do garoto no ar, era como um animal predando, faminto e furioso.

Zero. A ponta da motosserra acertou o estômago do invasor; o corpo de Ikarus colidiu contra o do homem, que caía para trás conforme a motosserra adentrava seu estômago; a dor era surreal a ponto de ele morder a própria língua enquanto se engasgava com o sangue que jorrava de sua boca pelo estrago feito; assim, a serra destroçava os órgãos do invasor. A última coisa que aquele homem viu antes de morrer foram os olhos irados de uma criança de apenas oito anos, ou melhor...

 

Os olhos de um animal selvagem.

 

Logo após a morte do último invasor, Ikarus soltou a motosserra e limpou, com as mangas do pijama, o sangue de seu rosto. O cheiro de queimado o despertava para a sã consciência. O semideus olhava em volta, via fogo se alastrando pelos móveis da casa; o cheiro de sangue no ar e a bagunça feita faziam o semideus ficar trêmulo. Ele viu sua avó Helena caída no chão, com uma poça de sangue envolvendo-a; o semideus franzia o cenho confuso; correu em direção a ela, ajoelhando-se no sangue.

— V-vovó? Vovó! — gritava balançando o corpo da idosa.

Helena levantou a cabeça com dificuldade, olhando nos olhos do neto. Ikarus rapidamente removia a mordaça da boca de sua avó e tentava desfazer o nó que foi usado para amarrá-la.

— Ikarus, meu pequeno, você está bem? — Helena perguntava.

Os olhos âmbar da avó paterna do semideus o fitavam com ternura e preocupação; lágrimas escorriam do rosto dela, que ainda estava entristecida e preocupada.

— Desculpa, vovó, desculpa — o semideus dizia enquanto lágrimas rolavam de seu pequeno e pálido rosto.

As amarras feitas nas mãos da avó eram muito grossas e apertadas, ele não conseguiria desfazê-las apenas com as mãos.

— Vou pegar uma faca... — murmurou, e ao se levantar, viu o fogo que envolvia a cozinha. Helena suspirava pesadamente colocando a mão na costela, ela não iria dizer, mas o tiro que fora efetuado em direção à motosserra que Ikarus segurava havia ricocheteado e a atingido: a idosa não tinha muito tempo restante.

— Ikarus, venha aqui — Helena ordenava, chamando a atenção do neto, que chorava assustado.

— E-eu preciso te soltar, vovó. A casa está pegando fogo. A gente tem que fugir, me ajude a carregar o pai, a mamãe mandou eu fugir — Ikarus dizia caindo no chão próximo à avó. Ele abraçava a idosa, tentando de alguma forma trazê-la consigo.

— Você precisa sair daqui, filhinho.  Vovó e papai vão ficar bem — Helena disse e, mesmo amarrada, levantava os braços para trazer o neto adotivo para próximo de si, abraçando-o e beijando sua testa.

— Mentira, não vão não! — Ikarus falava em desespero, a voz do garoto ficava aguda pelo choro.

— Quando estávamos na Grécia, eu prometi te levar em um parque de diversões... Você se lembra disso? — Helena perguntava enquanto o fogo se alastrava.

Ikarus, ao ouvir a pergunta da avó, chorava ainda mais.

— S-sim — dizia em soluços com o rosto afundado na clavícula da avó, com medo de se separar dela.

— Juro pelo rio Estige que cumprirei essa promessa, eu e seu pai vamos ficar bem, contanto que saia da casa agora — Helena dizia, obrigando o neto a olhar em seus olhos.

Ikarus sabia que promessas feitas pelo rio Estige, que era um rio sagrado para os deuses no submundo, nunca poderiam ser quebradas, ou a pessoa seria amaldiçoada para a eternidade por quebrar a promessa. Sabia que a avó não mentiria para ele: pelo menos, era o que o pequeno acreditava em sua inocência juvenil.

O som de um vazamento de gás começava a ser ouvido. Helena sabia do que se tratava e não podia deixar o neto ficar próximo a ela, então olhou nos olhos do pequeno e falou com uma voz autoritária:

— Vá! Certamente sua mãe está a caminho, você tem que fugir agora. Vamos ficar bem, fuja, e não olhe para trás! — falou para Ikarus.

O pequeno balançava a cabeça em negação, mas confiava na palavra de sua avó, que havia cuidado dele desde sempre. Então se levantou, sem olhar para trás, e em meio a soluços e lágrimas, correu pela sala. Os pequenos pés tocavam as poças de sangue, pulavam evitando rastro de fogo e, ao chegar próximo à porta da frente da casa, o inevitável acontecia.

 

BOOOOOMMMMMM!!!!

 

O fogo entrou em contato com o vazamento de gás, causando uma grande explosão que, por pouco, quase acertava as costas do semideus. A força da explosão o lançou a metros no ar; ele caiu de costas em cima do vidro da van dos invasores, que quebrou com a força do impacto do corpo do garoto, e ele perdeu a consciência devido à exaustão e ao dano sofrido.

O som da explosão havia sido ensurdecedor, assim como o som do estilhaço do vidro da van. Tudo havia acontecido tão rápido... o garoto só queria fugir dali, com seu pai, sua avó, para enfim encontrar sua mãe e ficar em segurança, mas suas esperanças foram destruídas...

 

(...)

Local: Rússia/ Oymyakon.

Data: 16 de abril de 2008

Horário: 5 horas

 

Três horas se passaram desde a explosão na casa. O fogo da explosão havia engolido a casa em chamas naquela fria madrugada, o brilho do sol nascia por entre as nuvens de um dia nublado e ventos fortes vindo do Oeste sopravam o fogo, acendendo brasas de destroços. A casa de Ikarus não existia mais.

Ikarus sentia uma gota de água caindo em sua testa e escorrendo pelo seu rosto. Ele abriu os olhos e viu o céu claro do dia que começava. Piscou os olhos algumas vezes, moveu os dedos, sentiu outra gota caindo em seu rosto, para enfim despertar.

O semideus encarava o céu, ele estava deitado sob o vidro do para-brisa trincado da van; camadas de gelo e neve cobriam passivamente o seu corpo, curando cortes, feridas e a exaustão física que antes sentia.  O som dos cacos de vidro o despertou, então ele se levantou com cuidado para não se cortar e, ao conseguir, saiu de cima da van, caindo de joelhos sobre a neve.

O sangue dos ferimentos do semideus, assim como o de seus agressores, secaram em seu pijama e por partes de seu corpo. Incrédulo com tudo que viveu, ele caminhou até parar na frente de sua casa.

Ikarus via sua casa carbonizada, lágrimas se formavam no rosto do garoto, que não sentia o cheiro de sua avó ou pai com seu olfato aguçado, apenas carne queimada.

— Pai… vó! — chamou, olhou ao redor, procurando-os, mas a verdade já batia à porta do coração do pequeno. — A-alguém... socorro! — gritou, olhava ao redor, não havia ninguém.

A casa dele ficava afastada do resto das casas de Oymyakon, mas não havia como a explosão não ter sido ouvida. Lágrimas rolavam no rosto de Ikarus.

— P-por quê... ninguém veio... ninguém veio me ajudar...? — O garotinho colocava as mãos trêmulas na cabeça, chorando.

Os moradores deveriam ter ajudado. Eles eram boas pessoas, mas, por algum motivo, ninguém apareceu para o socorro do pequeno e sua família.

— Mamãe... — Ikarus chorava, clamando por Despoina.

O semideus ouviu uma tábua de madeira caindo em sua casa, olhou e lembrou-se do corpo de seu pai baleado, sua avó amordaçada, ferida e preocupada. Então um misto de sentimentos começou a percorrer pelo corpo do semideus, ele sentia algo estranho acontecendo.

A dor da perda, a ira, o desejo de vingança e a tristeza por saber que ninguém da vila veio em seu auxílio fez algo que estava adormecido dentro do semideus crescer. O corpo do pequeno começava a resfriar ainda mais do que o normal para um filho de uma deusa do gelo; camadas de gelo se formavam no rosto do pequeno; os olhos cristalinos brilhavam em um tom branco; o vento que soprava do Oeste se intensificava; as lágrimas nos olhos de Ikarus esfarelavam em pedaços minúsculos de gelo. O garoto cerrava o punho, e as veias no corpo dele dilatavam brilhando em tons azuis e brancos.

 

Argh... ahh... ROAHHH!!!, WOAAAAAA!!!

 

Em um grito de fúria,

A natureza divina destrutiva em Ikarus acordava de vez.

 

A temperatura do vilarejo de Oymyakon era derrubada gradativamente; a umidade do ar era substituída por pequeninos fragmentos de gelo, e esses fragmentos eram inalados por todos os moradores da vila. Com isso, os fragmentos chegavam aos pulmões, congelando-os e cortando o tecido, ocasionando uma hemorragia pulmonar.

Em algumas casas do vilarejo, moradores saíam buscando ajuda: alguns carregavam seus bebês no colo, outros tentavam ligar seus snowmobiles para dirigir até a médica local, mas morriam antes de conseguir.

Ao tentar fugir, vomitavam sangue, tossiam pelas ruas desesperados, dando à cor branca da neve forrada no chão um tom vívido de vermelho sangue. A cidade, que era composta por pouco mais de quinhentos habitantes, diminuía a cada segundo que se passava; fosse homem, mulher, criança, todos eram afetados pela catástrofe de origem semidivina. Até que, por fim, toda a população da cidade russa de Oymyakon havia sido dizimada pelo “fenômeno natural” que seria identificado semanas depois pelos cientistas como “Pó de diamante”, onde os pulmões se rasgavam em colapso pela inalação de fragmentos gélidos estranhamente solidificados com minerais resistentes à temperatura corporal humana.

Poucos minutos se passaram e, no centro da cidade, uma criança caminhava vendo corpos na rua, descalça; com seu pijama azul claro sujo de sangue, cinzas, neve e gelo. Estava irada, não se importava com aqueles corpos. Ikarus havia perdido sua família, estava sozinho e não se importava com nada nem ninguém além deles.

O vento do Oeste soprou novamente, balançando os cachos da cabeça da criança, uma figura masculina estava parada no meio da larga rua de neve, na qual Ikarus caminhava. Era um homem belo, loiro de cabelos lisos num penteado perfeito. Ele tinha olhos rosados que brilhavam, imediatamente Ikarus sentia um cheiro único, “flores, frescor”, ele nem sequer olhava, passava pelo homem esbarrando nele, continuando o caminho reto que havia traçado.

O homem dava um largo sorriso psicótico, ele passava a língua no lábio inferior enquanto ouvia os passos do garoto se afastando. O vento vindo do Oeste soprava pétalas de rosas na direção do semideus, dançando em volta do corpo do pequeno. Ele parava para observar com seus olhos cristalinos, que ainda brilhavam pelos sentimentos de raiva.

— Você tem que tomar cuidado! Esbarrar em alguém, sem pedir desculpas, e ainda por cima dar as costas, tão frio... Parece até sua mãe... — o homem disse com uma voz chorosa.

Ikarus ouviu um som de bater de asas e instintivamente olhou para trás, para ver algo que nunca havia visto antes em sua existência.

O homem usava apenas roupas brancas, era muito alto, tinha no mínimo um metro e oitenta. Mas o que mais chamou a atenção do semideus foi o fato daquele ser ter asas e olhos cor-de-rosa. Ikarus soube no mesmo momento: era uma divindade, um deus alado; lembrou-se das aulas com Elliot e sua avó, algumas divindades possuíam asas, mas eram pouquíssimas. O deus perguntou ao semideus:

 

— Sua mãe, a Despoina, ela não te deu educação?

 

Em seguida, caminhou em direção a Ikarus. Antes que o pequeno pudesse desviar, a divindade o pegou pelo pescoço. 

— Calma, deixa eu pelo menos me apresentar — o deus falou para Ikarus apertando o pescoço do garoto, que se debatia tentando se soltar.

Os flocos de neve começavam a rodopiar o corpo de Ikarus na tentativa de auxiliar o pequeno, mas o vento lançava-os para longe.

— Meu nome é Zéfiro, um dos quatro deuses do vento. Sou uma divindade da primavera, filho do titã Astraeus e da titã Eos, e um inimigo da sua mamãezinha.

Ele apertava o pescoço do semideus, trazendo-o para perto de si. Ikarus via os olhos rosados do deus, eles estavam envoltos em fúria e psicose. Logo continuou dizendo:

— O gelo frio e invasivo dela sempre afetam meus domínios e dos meus irmãos. Sabe como é, pequeno. Nada pessoal com você, mas senti sua energia e vim correndo ver se era a Despoina, você é um achado e tanto — disse irado numa voz chorosa, cheirando os cabelos de Ikarus.

O deus revirava os olhos ao sentir a essência divina do semideus, que se debatia tentando soltar-se, até que, por fim, o pequeno cerrou o punho, que era envolto em uma fina camada de gelo; cerrou os dentes e, com grande determinação, desferiu um soco no rosto de Zéfiro. Os olhos cristalinos do semideus brilharam ainda mais conforme uma expressão de raiva invadia o seu rosto até então sereno.

Zéfiro viu o punho de Ikarus vindo em sua direção. Ele deixava o semideus o acertar, pois queria ver o quão forte o pequeno era. Ao receber o golpe, virou o rosto com o impacto. Conforme a fina camada que havia se formado no punho do semideus se estilhaçava, Zéfiro sorria largamente, excitado com a força de vontade do pequeno.

— Own, que maravilhoso! — gemeu, olhando a fundo os olhos cristalinos brilhantes do semideus.

O deus revirava os olhos, abraçava Ikarus com força, sentindo o corpo do pequenino e toda a força divina que fluía dele. Com uma voz manhosa e ao mesmo tempo ansiosa, ele falou:

 

— Garoto, AMO sua expressão...

   

Zéfiro estava completamente excitado com a evolução divina que Ikarus estava apresentando, o pequeno emanava seus dons conforme o sentimento de ira aumentava em sua alma. Ele resmungou, gemendo entre os dentes:

 

— Mas... Oh!... eu tenho que me controlar!

 

Passando a língua entre os lábios, o deus continuou falando:

— Sabe, frutos em amadurecimento são os melhores a se provar!

Afastou o semideus para olhar novamente no rosto do pequeno, que não entendia o que estava acontecendo, mas lutava pela própria vida.

— Todas as minhas primaveras, sua mamãezinha sempre, sempre, destruiu as minhas, as da Perséfone, da Deméter... ela é tão maldosa... vive interferindo em nossos domínios... — dizia choroso, fazendo um beicinho enquanto tocava no rosto de Ikarus com a ponta dos dedos.

— Me solta! — Ikarus gritou, tentando morder, chutar, socar a divindade que o segurava. O semideus não fazia ideia do que estava acontecendo.

Zéfiro era um dos quatro ventos, filho de dois titãs. Ele tinha funções específicas no mundo divino. Não era uma grande divindade, ainda assim, ele e seus irmãos, Bóreas, Notus e Eurus eram reconhecidos por todas as divindades. Os quatro ventos eram inimigos naturais de Despoina: Zéfiro era uma divindade da primavera; Notus, do verão; Eurus, do outono; e Bóreas, líder dos quatro ventos, era uma divindade do inverno e rival de Despoina.

Desde os primórdios, Despoina causa problemas aos quatro ventos, interferindo em suas estações. A presença da deusa lutava contra a de Bóreas, sobrepondo o gelo dele com seu gelo e inverno destrutivo. Enquanto eles faziam parte de um ciclo, Despoina era a quebra dele, engolindo seus domínios com o próprio.

A mãe de Ikarus havia feito coisas terríveis para os quatro ventos no passado. Despoina, em seu anseio por poder, desafiou os deuses, matando seus cultistas, destruindo altares e templos de adoração. Uma longa e misteriosa história, que aconteceu há muito tempo e foi arrastada até os tempos atuais, ocasionou em uma guerra por vingança, poder e territórios no mundo divino e mortal.

— Vou levar você comigo até a Hiperbórea. Lá vou ver você crescer, ficar forte... até a hora de devorar você todinho! — Zéfiro falou com um sorriso.

O deus imaginava como seria a cara de Despoina vendo o filho dela ser torturado pelos rivais que ela tanto detestava.

— Sua morte vai ser nossa diversão... — Zéfiro disse.

Ele estava impressionado por Despoina ter um filho; a excitação que a divindade sentia em sua carne ultrapassava os próprios limites de seu egocentrismo divino. Nos tempos antigos, Zéfiro ficou conhecido por assassinar friamente um filho de Apolo em uma competição amigável. Dos quatro ventos, ele era o irmão mais belo e, infelizmente, o mais psicótico, para o azar do semideus.

— Own, hum... owmm... — gemeu e revirou os olhos tendo pensamentos caóticos e lascivos enquanto apertava a garganta de Ikarus, que soltava o ar. O garoto esperneava procurando uma maneira de fugir.

Enquanto afrouxava o estrangulamento, permitindo o semideus puxar ar para seus pulmões novamente, Zéfiro disse:

— Já sei! Vou te devolver o soco que me deu!

 

O deus do vento e primavera sorria de forma doentia. Seus olhos reviravam novamente, era notório o quão excitado estava com a tortura do semideus. A vingança que Zéfiro estava planejando contra Despoina seria digna de entrar na história do cosmos divino.

— Por favor, sobreviva a este soco, garoto! — O deus cerrava o punho, erguendo mais ainda o semideus no ar; ele estava preparando o golpe certeiro.

Ikarus instintivamente contraía o abdômen, colocando a mão no estômago para se proteger. Zéfiro desferia o golpe que cortava o ar em sua velocidade; em uma fração de segundos, atingiu o peito do semideus evitando a defesa do pequeno.

Ikarus saiu voando para longe com a força do soco de Zéfiro. O som “Craack” anunciava que algumas costelas do semideus quebraram pelo soco; os órgãos internos, protegidos pela caixa torácica, sofreram o dano do impacto. Zéfiro não golpeou com intenção de matar, apenas para torturar o semideus, que caiu no chão e rolou por alguns metros.

De costas na neve, o pequeno olhava para o céu claro da manhã que se formava. O semideus abria a boca tentando puxar ar para dentro dos pulmões, mas sem sucesso, viu tudo escurecendo. Ele nunca havia sentido tamanha dor física em toda sua vida.

— Quebrou? — Zéfiro perguntou, caminhando em direção ao pequeno, com uma cara preocupada.

 

-100°C

 

Em um piscar de olhos, uma nevasca invadia Oymyakon, a temperatura diminuía drasticamente; em apenas um segundo, uma muralha de gelo se formava entre Ikarus e Zéfiro; o deus, ao perceber, deu um pequeno sorriso.

 

Theminaris havia chegado.

 

A divindade abria suas asas cor-de-rosa. Atento ao redor, Zéfiro estalava os dedos, controlando seus ventos para que dissipassem a nevasca que havia se formado, mas não teve sucesso. A força da tempestade invocada por Despoina era tão grande que Zéfiro tinha de se concentrar para não ser levado por ela.

O deus se preparava para alçar voo, para ter uma melhor visão, mas, quando estava prestes a pegar o impulso para sair do chão, uma mão feminina e branca, pálida como a neve, surgiu em meio à nevasca bem em frente do seu rosto. Os olhos de Zéfiro vidravam, um calafrio percorria toda sua espinha conforme ele se aproximava: tudo acontecia rápido demais para que o deus do vento pudesse evitar.

 

TSSS...

 

Foi o som do gelo de Despoina engolindo Zéfiro. Com um único toque, a deusa colocava a mão no rosto da divindade e, a partir daquele ponto, gelo mágico, criado por meio da energia divina da deusa, congelava momentaneamente o corpo do deus que não foi rápido o bastante para fugir. Do outro lado da muralha de gelo, Ikarus gemia por não conseguir respirar:

— Ah... Argh...

Aos poucos, a consciência se esvaia conforme cuspia sangue pelo dano sofrido aos órgãos. Antes que o pequeno perdesse completamente a consciência, viu uma mulher pálida, cujos cabelos brancos ondulados caíam de seu capuz, descendo em mechas até a altura de seus seios; conforme ela se ajoelhava ao lado dele, o pequeno notava um brilho vindo da armadura, que era feita de um metal divino único. A cor dela parecia alternar entre o prata e o branco, a peça era justa e ofuscou momentaneamente os olhos do semideus, que em seguida viu os olhos cristalinos da deusa. Os lábios pálidos se moviam conforme ela gritava.

— Ikarus! Ikarus! — a deusa chamava por seu filho, colocando uma mão na nuca do pequeno como apoio e a outra em seu peito.

Desesperada, via o filho padecer, e com a intenção de estabilizar o dano que ele havia sofrido, logo enviava energias divinas para o corpo do semideus. Incitando o garoto a usar os dons que ele carregava, a deusa disse:

— Respire fundo, concentre-se, cure-se.

O semideus ouvia a voz preocupada de sua mãe, fechou os olhos e a boca e, com todas as suas últimas forças, esforçou-se para respirar. O pequeno puxava o ar para dentro de seu pulmão, inflando-o. O dom de Despoina estabilizava o corpo do garoto, as costelas fraturadas e estilhaçadas eram congeladas para voltar a sua normalidade, impedindo assim que os estilhaços de ossos perfurassem os órgãos dele.

Quando o pequeno respirou, sentiu o oxigênio revigorando sua sanidade e consciência. Ikarus voltava a enxergar e via com clareza a expressão de preocupação de sua mãe, que estava quase o abraçando. “Então, essa é minha mãe?”. O pequeno se questionou ao ver o rosto belo e pálido da divindade com clareza. A deusa tornou a dizer:

— Concentre-se e respire, garoto, regenere seus órgãos!

Ikarus ouviu e imediatamente seu subconsciente se questionou sobre como ele poderia fazer aquilo, mas a natureza divina do semideus estava no controle sobrepondo o subconsciente. Ikarus, de alguma forma, sabia o que tinha que fazer e, mais uma vez, respirou fundo.

O semideus fechava os punhos segurando a neve abaixo dele. Concentrado, pensou na temperatura negativa a sua volta, pensou nos flocos de neve, na brisa fria e em um cenário onde o gelo cobria tudo.

O mesmo gelo que congelava cachoeiras era aquele que agora, em seus pulmões e estômago, resfriava por completo o superaquecimento mortal dos órgãos danificados, o gelo percorria artérias e veias; os vasos sanguíneos dilatavam até que, por fim, a temperatura do garoto era igual à do ambiente: cem graus negativos. Os órgãos eram revestidos por finas camadas de gelo, a hemorragia interna cessava por completo.

— Mãe? — O semideus soltava a neve, levava a mão para tocar o próprio peito, chamando por sua mãe, que o olhava com um semblante sereno, aliviada pela criança estar a salvo.

A muralha de gelo que estava em frente de Ikarus e Despoina explodiu em uma chuva de estilhaços de gelo e pétalas de rosas. A deusa rapidamente colocou-se em frente ao semideus para protegê-lo de possíveis danos. Puxando com uma mão a longa capa semi transparente e prateada, que era acoplada nos ombros de sua armadura, ela impedia que as pétalas de rosas de Zéfiro chegassem próximas ao pequeno.

— Levante-se, corra para a floresta — a deusa disse.

Ikarus se levantou sem saber de onde havia vindo os ataques de Zéfiro, mas o pequeno, ainda que não concordasse com a ideia da mãe, obedeceu. Ikarus fora treinado desde cedo, sua mente era forte. Mesmo sendo uma criança, entendia o que sua mãe estava prestes a fazer.

Conforme Ikarus corria, flocos de neve envolviam seu corpo, fazendo uma camada protetiva contra os ventos de Zéfiro. O gelo de Despoina congelava as pétalas de rosas mágicas que voavam em direção ao semideus na tentativa de retaliar a carne do pequeno.

Despoina respirava fundo e, ao ver o filho saindo da zona de conflito, soltava o ar aliviada. Assim, a deusa levava as mãos até o capuz que usava, para então, lentamente o tirar. A deusa revelava uma expressão sombria única; envolvida em fúria, ela levantou o queixo com um ar de arrogância e chamou por Zéfiro:

— Apareça, lixo! — disse, decidida a exterminar aquele deus da face do cosmos.  

— Eu estava me divertindo tanto com seu filho! Você nem imagina o que eu ia fazer com ele. Não gosto de dar spoilers, mas ia ser muito pior do que aquilo que Poseidon e Deméter fizeram com você, sua pobrezinha! — o deus respondeu à divindade com arrogância à altura: o egocentrismo e orgulho do deus dos ventos e primavera não o permitiria ser desrespeitado por aquela deusa.

Zéfiro caminhava de braços cruzados, exibia as poderosas asas cor de rosa com um largo sorriso branco estampado em seus lábios vermelhos. O deus fazia questão de provocar a deusa.

Despoina ficava em silêncio, olhando no fundo dos olhos de Zéfiro. O desejo de destruição da deusa ficava nítido, pois se manifestava no ambiente; o corpo da deusa era envolvido com uma aura branca que lembrava uma condensação. Aquele fenômeno era a força de vontade sendo manifestada na carne e, no caso da deusa, o desejo pela cabeça de Zéfiro. O fenômeno também era chamado de “Conatus” a materialização do desejo, um poder que todos os seres vivos tinham e impulsionava suas forças.

— Juro que arrancarei sua cabeça — Despoina sentenciou Zéfiro, que riu da deusa, parado a um metro de distância dela.

Frente a frente, as divindades se encaravam imóveis, as ações passadas de ambos determinaram aquele momento.

— Você tem sido um estorvo para muitos, durante muito tempo. Sua puta fria, jamais será perdoada por suas atrocidades. Você se acha no direito de ter um filho após todas as famílias de cultistas inocentes que você matou? — Zéfiro perguntou.

O deus deu três passos para frente, ficando a centímetros de distância de Despoina. Ele a olhava de baixo para cima.

— Nunca quisemos guerra, mas agora não há mais como parar nossa caçada contra você. Bóreas quer te enfrentar, ele quer provar que o gelo dele é superior ao seu, mas sou eu quem vai destruir você — falou o deus enquanto estalava os dedos.

Logo ele invocou, de forma prepotente, uma armadura de metal divino na cor de ouro maciço, que surgiu cobrindo seu corpo: era uma armadura tradicional grega. Esse gesto do deus indicava que ele não pretendia deixar Theminaris sair daquela briga viva.

— Então, quer lutar com ou sem armas? — Zéfiro perguntou, debochando da cara de Despoina com seu olhar.

— Vou arrancar sua cabeça com minhas próprias mãos — Despoina respondeu friamente.

A deusa olhava Zéfiro com o queixo erguido, ela se achava superior ao deus. Estava determinada a destruí-lo.

— Ótimo — Zéfiro falou.

Em um piscar de olhos, o deus explodiu em pétalas de rosas, tomando distância da deusa, que avançou num pulo em direção ao pescoço do deus do vento.

A metros de distância, Zéfiro deslizava nas ruas de Oymyakon. Ele havia tomado uma posição estratégica para enfrentar a deusa. Ambos estavam preparados, mas apenas um sairia vitorioso. Logo, Zéfiro e Theminaris pensaram:

 

Que comece a luta!”

 

O deus do vento do oeste pegava impulso, assim como Despoina, e ambos colidiram no ar. A deusa do gelo aparou um soco do deus com os antebraços unidos. Ainda no ar, Zéfiro girou o corpo e desferiu um chute contra o rosto da deusa, que foi lançada em direção ao chão; mas, antes de colidir contra o solo, ela deu uma cambalhota no ar, pousando em pé.

A deusa apontou a mão aberta em direção ao peito de Zéfiro, invocando uma lança de gelo que apareceu formada a partir do seu dom, revestindo-a com a energia de sua Conatus. Em seguida, arremessou-a em uma velocidade e maestria impressionante em direção ao peito de Zéfiro. A trajetória e o arremesso da arma eram perfeitos, e ela explodiu contra a armadura que o deus usava. O impacto da explosão o fez ser arremessado para longe.

O deus colidiu contra uma casa da cidade, destruindo a parede com o impacto do próprio corpo. Ele ria caído no chão dos escombros e se levantava calmamente, para então caminhar para fora da estrutura.

Despoina estava parada de braços cruzados, metros à frente do buraco da parede, aguardando-o sair. O deus caminhava para fora, gargalhando, com seus olhos rosados repletos de êxtase pelo prazer de lutar contra a deusa que ele mais odiava.

 

Theminaris! Sua habilidade... como sempre, me encanta!

 

Despoina, ao ouvir seu nome verdadeiro pronunciado por aquele deus, irou-se. Em uma explosão de flocos de neves, teletransportou-se para os flocos que caíam em frente ao deus e, com grande força, desferiu um soco em cheio na sua boca.

Zéfiro aguentou o soco.  Dessa vez, não foi arremessado para longe, porém, virou o rosto, cuspindo sangue dourado, que era a cor natural do sangue dos deuses. Junto do sangue cor de ouro, dentes eram cuspidos na neve. O deus, vendo que havia conseguido irritar a deusa do gelo, sorriu com a boca ensanguentada e gemeu em uma voz chorosa repleta de excitação:

— Own, não precisa pegar leve comigo!

Zéfiro era o tipo de divindade que sentia prazer em emoções intensas, e as emoções do combate deixavam o deus alucinado de tanto prazer.

O deus avançou contra sua inimiga, desferindo socos em direção ao rosto da deusa, que desviava e aparava os golpes com maestria. O som da colisão entre defesa e ataque seria ensurdecedor para os moradores de Oymyakon, caso algum estivesse vivo.

HAHAHAHA!

Zéfiro gargalhava enquanto trocava golpes com Despoina, que bloqueava os ataques. Cada segundo que se passava, a fúria psicótica de Zéfiro o consumia cada vez mais.

A deusa era uma estrategista em combate, estava bloqueando os avanços do deus para entender o padrão de ataque que ele usava em seus golpes e, ao aprendê-los, decidia que era hora de revidar.

Ela bloqueava um uppercut, um golpe, cuja trajetória era direcionada de baixo para cima, visando acertar o queixo do oponente. Ela colocava a palma da mão virada para baixo logo abaixo do próprio queixo e então, quando Zéfiro acertava o soco, a deusa fechava a mão, segurando o punho do deus.

A divindade do gelo congelava a mão de seu inimigo para, em seguida, pressioná-la, fazendo com que ela se estilhaçasse, sendo destruída. Zéfiro gritava de dor, Theminaris aproveitou a brecha de um único segundo para desferir um soco em cheio no estômago do deus.

O corpo de Zéfiro voou, bateu contra o telhado de uma construção e continuou a subir em direção aos céus. Enquanto era arremessado no ar, o deus sentia uma dor estranha em seu peitoral: os instintos das divindades não falhavam. Quando o deus olhou para seu peitoral, viu que Despoina destruiu sua armadura; primeiro, ela enfraqueceu o metal divino com o golpe da lança de gelo, em seguida desferiu um soco para romper o metal.

Zéfiro sorria, concentrando-se para regenerar o próprio corpo e os danos sofridos até então. O deus abriu as asas cor-de-rosa no ar e invocou os ventos do Oeste para virem em seu auxílio. Aumentando drasticamente sua velocidade, Zéfiro sumiu do campo de visão de Theminaris. Antes que a deusa pudesse localizar o deus, ela recebeu um ataque brutal vindo dos céus.

O deus surgiu atrás de Despoina e desferiu um soco diretamente na nuca da deusa, que viu tudo escurecer por uma fração de segundos. A deusa do gelo voou arrebentando casas consecutivamente. O soco de Zéfiro fora tão forte que fez a neve de toda a rua se dissipar, paredes e mais paredes de ao menos quatro casas daquela rua eram destruídas pelo corpo de Despoina. E, antes que a deusa pudesse recobrar sua postura, Zéfiro voava em alta velocidade. Agarrando os cabelos da deusa com uma mão, gritou animado:

 

QUERIA TANTO SER O SEU EXECUTOR!

 

Despoina tentava se soltar, mas, sem sucesso. Zéfiro batia suas asas, criando uma pressão que destruía construções da cidade. O deus colocou o corpo de Theminaris em frente ao próprio, como um escudo, e, com o corpo da deusa, voou em direção à floresta congelada. Zéfiro usaria o corpo de sua inimiga contra as árvores

As árvores eram destruídas com o corpo da deusa, Zéfiro voava como uma bala, os troncos de algumas árvores explodiam com a força do impacto, outras se partiam sendo lançadas a metros, a deusa sentia o impacto sendo multiplicado em forma de dano conforme a velocidade do deus dos ventos aumentava.

Por fim, Zéfiro subiu, rodopiando com a deusa no ar em um redemoinho que invocava pétalas de rosas e penas que saíam das próprias asas do deus. Cada pétala e pena cortava a pele exposta da deusa, e a armadura que Despoina usava começou a ser danificada.

No ar, Zéfiro lançou Despoina em direção a uma grande rocha na floresta. O corpo da deusa voou em uma velocidade surreal, quase invisível aos olhos humanos. O corpo dela estilhaçou a rocha, partindo-a em pedaços, que voaram por toda a neve da floresta.

Zéfiro batia suas asas no ar, observando Despoina com repúdio e nojo. O semblante psicótico do deus era substituído por uma expressão séria; para ele, Theminaris era uma divindade que já havia perdido a dignidade e a função no mundo divino, ela deveria ser exterminada.

— Você causou muita destruição a muitos seres. Você não merece existir, não merece a benção de ser mãe. Você e seu filho são aberrações, frutos das sombras e vingança. Viu quantas pessoas foram assassinadas pela sua prole naquela pequena cidade pacífica? — Zéfiro disse, enojado.

Despoina ouvia as palavras do deus e lentamente, recobrava a postura, regenerando o dano sofrido dos múltiplos impactos.

— O fruto não cai longe da árvore, não é mesmo, Theminaris?! — gritou para a deusa, que terminava a regeneração.

O Sol, que recém havia nascido, estava encoberto por nuvens, um fenômeno único estava se desdobrando. Nuvens de tempestade se formavam no céu, que escurecia trazendo sombras para a floresta. As consequências das correntes de ar de Zéfiro e do gelo de Despoina haviam ocasionado aquele fenômeno divino no mundo mortal.

Na região da floresta onde Zéfiro e Despoina lutavam, havia uma pequena caverna formada pela neve e gelo em conjunto com as raízes de árvores que há muito tempo haviam morrido pelo frio intenso. Dentro do buraco, uma criança de cabelos cacheados brancos estava escondida.

Ikarus via sua mãe se levantando após ter sido lançada por Zéfiro contra a rocha. O pequeno semideus estava encolhido, abraçando as próprias pernas enquanto a essência divina congelava seus sentimentos para preservar seu estado mental.

Os olhos de Ikarus ainda brilhavam, manifestando a presença divina que ele exercia na região, e isso fazia tanto Theminaris quanto Zéfiro sentirem que a criança estava próxima.

A deusa do gelo olhou de canto e conseguiu ver os olhos do semideus brilhando, encarando-a de dentro da pequena caverna. Ao ver seu filho ali, em conflito interno, sozinho, Despoina decidiu que já estava na hora de encerrar aquele combate.

Zéfiro também estava decidido. O desejo de vingança, de punição pelos crimes de Despoina, dava forças para o deus continuar usando sua velocidade máxima assim como sua invocação de pétalas e penas mágicas cortantes. Ambas as divindades pensavam:

“DE AGORA EM DIANTE SERÁ MATAR OU MORRER”.

Zéfiro pousava no chão em cima da caverna na qual Ikarus estava escondido e, antes que o pequeno pudesse ter quaisquer reações, o deus golpeou o gelo, arrebentando-o junto das raízes, para então segurar o semideus pelos cabelos, arrancando-o de dentro de seu esconderijo.

Zéfiro pulava, para pousar a metros de distância de Despoina. O deus tinha suas asas abertas; as penas eram afiadas, revestidas em energia divina, prontas para dilacerar a deusa do gelo. Ikarus foi feito de refém, o semideus esperneava e golpeava o ar, sendo mais uma vez subjugado pelo deus do vento.

— Renda-se e morra ou vou arrancar os bracinhos do seu filhinho — Zéfiro disse ameaçando a deusa.

A manhã que já estava sombria, tornava-se obscura, e a ira de Despoina havia atingido o ápice. A deusa erguia o queixo, revelando o mais puro caos vingativo nos seus olhos.

As sombras das árvores, as de Theminaris, de Zéfiro e de Ikarus aumentavam, como se estivessem esparramando-se no chão. Antes que o deus dos ventos pudesse perceber, todo o chão daquela região tornou-se uma poça escura de sombras, advindas do dom das sombras que a deusa carregava como poder divino secundário.

Em uma velocidade impressionante, Despoina manifestava as sombras com sua Umbracinese, que era a arte do domínio das sombras. A deusa as usava para moldar amarras que saíram da própria sombra de Zéfiro, para então o prender. Zéfiro, paralisado, não conseguiu reagir a tempo, pois a fúria de Despoina impulsionou o poder de seus dons divinos: provocá-la foi um erro.

Ikarus conseguiu se soltar. O semideus caiu no chão e começou a ser engolido pelas sombras de sua mãe, como se estivesse em uma poça de areia movediça. O pequeno ficou assustado ao ver as sombras o consumindo, mas, antes que o desespero o tomasse, ouviu as palavras de sua mãe.

— Ikarus, hoje lhe ensinarei três lições — a deusa disse enquanto caminhava lentamente, com o olhar de ira fixo em Zéfiro.

As sombras do poder da deusa envolviam as asas de Zéfiro como tentáculos, e como se fossem feitas de gravetos, as asas do deus eram prensadas pela materialização da escuridão até serem esmagadas. As pupilas do deus dilatavam pela dor insana que sentia.

Theminaris era como uma loba raivosa que avançava com sabedoria, rosnando em direção ao predador menor que ameaçava seu filhote. A deusa falou em alto e bom-tom, para que Ikarus ouvisse:

 

A PRIMEIRA LIÇÃO:

 

“As sombras nos rodeiam desde nosso nascimento.

Não tema a elas... Abrace-as e elas guiarão seus passos.”

Ikarus ouviu, piscou respirando fundo, permitindo-se ser envolto por aquela escuridão que não o consumia, mas fazia parte dele como um todo. O semideus afundava completamente nas sombras de sua mãe e era teletransportado para a posição na qual Despoina estava antes. As sombras tiraram Ikarus de perto de Zéfiro e ele foi levado para onde estaria seguro, para as costas de sua mãe.

Zéfiro tentava se libertar usando suas pétalas de rosas, que voavam em direção a Despoina; mas, antes que acertassem a deusa, eram congeladas pela presença do zero absoluto: o estado gélido divino que congelava até mesmo moléculas e átomos. Tal estado emanava do corpo da deusa, fazendo com que, as pétalas fossem desintegradas em um pó translúcido cristalino assim que tocassem seu corpo.

Despoina cerrava os punhos e algo parecido com fogo surgia deles, revestindo-os.  Eram chamas brancas, chamas do zero absoluto. A deusa era o destaque daquele cenário envolto em escuridão, os cabelos brancos pareciam brilhar conforme se moviam com os passos calmos da deusa. Os lábios pálidos no semblante sombrio proferiram a segunda lição de Ikarus.

 

SEGUNDA LIÇÃO:

“O gelo queima como o fogo.”

 

A deusa parou em frente ao corpo aprisionado de Zéfiro e, ainda com olhar de soberba, falou friamente, desprezando-o.

— Isso é por tocar no meu filho. — Theminaris colocou-se em posição, como um boxeador em um ringue. Os punhos em chamas brancas brilharam.

Um cruzado de esquerda acertou o maxilar de Zéfiro. O poder do zero absoluto que emanava dos punhos de chamas brancas congelava a pele, os ossos e até mesmo as células do local onde o golpe acertara, ganhando assim uma cor negra, como as sombras que os rodeavam. Aquilo era a morte das células do deus, necrose instantânea, causadas pelas queimaduras de gelo divino.

Despoina acertou outro soco no osso occipital do deus. A potência do soco era tanta que quebrou o local, fazendo o olho de Zéfiro saltar para fora do crânio. Despoina aproveitou e o arrancou para torturar a divindade. Zéfiro nem mesmo podia gritar, pois sua boca estava preenchida, como se as sombras agarrassem a língua do deus.

Ikarus observava, agora, sem medo ou dificuldades emocionais. O pequeno sentiu esperança e resquícios de felicidade ao ver o deus que tinha uma expressão de dor aguda estampada no rosto.

Os ossos faciais do deus haviam sido quebrados, ele sofria um espancamento divino com a fúria de mil avalanches. Minutos se passavam com Despoina socando o rosto e o corpo de Zéfiro. O deus já estava sem forças, e a deusa do gelo, esgotando-se pela intensidade dos golpes desferidos; o sangue dourado de Zéfiro fez uma poça no chão, tingindo a armadura e a pele branca da deusa. Do corpo dele, o sangue escorria por pequenas rachaduras na pele, que havia ficado negra em queimaduras devido à temperatura negativa dos golpes; partes da pele e ossos que não sofriam queimaduras eram simplesmente desintegradas pela força absoluta do zero absoluto.

Theminaris estava com o rosto e punhos igualmente ensanguentados pelo líquido vital dourado da divindade. A deusa desferiu outro golpe com as unhas em forma de garras, como o agarro de uma leoa, cravando as unhas no peito de Zéfiro e em seguida afundando a mão dentro dele.

O olho restante do deus revirava em dor, Despoina afundava o braço até tocar no coração do deus, que pulsava fraco pelos danos sofridos ao corpo. Zéfiro tentava desesperadamente se desvencilhar das sombras de Theminaris, mas já se esgotavam suas forças.

A deusa não perdia tempo, puxava o coração do deus para fora do peito, arrancando-o por inteiro. O coração dourado de Zéfiro passava a pulsar na mão da deusa do gelo.

As sombras que o seguravam eram recolhidas para a poça de sombras no chão. O deus lutava para ficar de pé, com as pernas trêmulas, visão embaçada, mas sorriu olhando para o rosto ensanguentado da deusa na sua frente.

— Haha… hahaha... e-eu... — O deus caía de joelhos no chão.

Tocou no peito aberto, olhando para a deusa, que mantinha o ar de soberania. Zéfiro suspirou, ainda sorrindo, sem dentes, com a boca completamente ensanguentada.

— V-você vai pagar, p-por... todos... os seus... pe… ca...dos... — A visão do deus ficava turva, ele lutava para se reconstituir, mas o dano das chamas brancas do zero absoluto impedia as células divinas que carregavam o Icorium de se regenerar. O Icorium era a essência divina dos deuses na corrente sanguínea, o mesmo que tornava o sangue deles dourado e dava os atributos de uma divindade.

Despoina ouvia e em seguida dava um pequeno sorriso de canto por alguns segundos enquanto mostrava o coração do deus para ele ver, em seguida ela voltava a expressão fria.

Theminaris, com suas chamas brancas, incinerava em zero absoluto o coração de Zéfiro, que caiu se debatendo, como se estivesse tendo espasmos ou uma intensa convulsão; ele urrava em dor extrema, certamente poderia ser ouvido de longe. Gritou e esperneou:

 

AAARRGHHH, AAAARRGHH, OOHWW!

 

O deus vomitou o próprio sangue, e em seguida arfou em desespero. Theminaris apertava o coração do deus com sua mão e unhas e, por fim, o esmagava, explodindo-o, impedindo por completo o deus de se regenerar naquele momento.

Zéfiro deu um largo espasmo ao ter o coração esmagado, a deusa recolhia suas chamas brancas, dando voltas calmamente no corpo de Zéfiro até, por fim, parar nas costas do deus. Theminaris limpava o sangue do rosto, olhava para Ikarus que assistia tudo em silêncio, para então proferir a terceira lição para seu primogênito.

 

TERCEIRA LIÇÃO:

 

“Para matar uma divindade imortal, é necessário desmembrá-la.”

 

Todos os deuses eram imortais, isso significava que mesmo que seus corações fossem arrancados ou cabeças decepadas, ainda assim ficariam vivos. A única forma de vencer por completo deuses era desmembrá-los em pedaços, separá-los, impedindo que se juntassem.

O deus ficaria vivo, mas enquanto seus membros não fossem reunidos, ou colocados próximos um do outro, não poderia se regenerar em sua totalidade. Pois, a única que conhece o segredo para retirar a imortalidade de um deus é Nyx, a deusa primordial das sombras. Desmembrar um deus era a única forma de garantir vitória absoluta em combates de “Morte”, foi assim que o monstro Typhon venceu Zeus no passado.

 

CRACK, CLASHH, SPLASSH!!!

 

Despoina arrancava as asas cor-de-rosa de Zéfiro, e o sangue voava em filetes conforme as asas rosas quebradas pelas sombras caíam na neve, decorando-a junto do sangue dourado. O deus dos ventos começava a se arrastar na neve em desespero, a expressão em sua face revelava o terror que sentia. Theminaris observava-o se rastejar, era como se ela visse um inseto prestes a ser esmagado.

— B-Bóreas... Nono... Notus... Eurus… — Zéfiro rastejou por metros clamando pelo socorro de seus irmãos, mas era tudo em vão, sem que percebesse, rastejou até os pés de Ikarus, que o observava com o mesmo semblante frio de Theminaris.

Ikarus também queria vingança pela morte de seus pais, ele não tinha piedade alguma do deus que seguia murmurando e clamando por ajuda. Theminaris se abaixou calmamente, levando ambas as mãos pálidas nas laterais da cabeça de Zéfiro, apertou-as com força enquanto colocava um pé nas costas do deus, forçando-o a ficar imóvel, prensado contra o solo.

 

RASGH

 

Theminaris puxava sem piedade a cabeça de Zéfiro, que começava a se desprender do tronco, a pele do pescoço do deus começava a rasgar: era possível ver veias e artérias ficando aos poucos à mostra conforme o sangue escorria.

 

RASSHH

 

A deusa flexionava seus músculos fazendo mais força, rasgando ainda mais, até a espinha ficar visível. O olho rosado restante de Zéfiro parava aos poucos de brilhar, a boca do deus estava totalmente aberta, como se estivesse dando um grito de dor silencioso conforme o sangue escorria dela... e em um último ato...

 

CRACK, SPLASHH!

 

 

 

 

Preto e branco_Restaurado3.png

Theminaris arrancou a cabeça de Zéfiro, filetes de sangue voaram na neve, no rosto de Ikarus e em Despoina, que agora segurava a cabeça do deus pelos fios loiros do cabelo. A deusa do gelo imediatamente congelava o novo troféu adquirido, para então pendurá-lo em sua cintura.

 

(...)

 

Minutos se passavam enquanto a deusa limpava a bagunça feita, terminando assim de desmembrar o corpo do deus. Após retirar todo o sangue do próprio corpo e de sua armadura, Theminaris caminhou em direção ao seu filho.

Ikarus estava caído no chão e encolhido próximo às árvores congeladas. Os olhos do pequeno fitavam sua mãe em silêncio. O semideus sentia pontadas de dores em seu peito, o soco de Zéfiro causara um enorme dano; seus ossos e órgãos só se mantinham estáveis graças à energia de Despoina, que auxiliava a manutenção do congelamento interno das fraturas e danos no semideus.

Os ventos já não estavam tão fortes como antes, a temperatura em Oymyakon subia alguns graus, a deusa estava pronta para partir. E devido a isso, ela caminhou em direção ao semideus, parou em frente a ele e o fitou.

— Consegue andar? — Theminaris perguntou.

O pequeno, por mais que tentasse, não conseguia evitar olhar para a cabeça de Zéfiro, que estava pendurada na cintura de sua mãe. Ele negou com a cabeça, o semideus estava fraco demais após o surto divino que se manifestou.

— Elliot e a vovó Helena... morreram — o semideus falava abaixando a cabeça triste, ele se lembrava dos homens que matou, olhou para as suas pequenas mãos sujas em sangue seco, tal como suas unhas.

Ele sentia o cheiro do ferro do sangue dos bandidos que matara, e aquilo revirava o seu estômago.

— Entraram em casa, mataram eles — Ikarus disse com os olhos vidrados, revivendo a morte de seus parentes. — Vovó jurou pelo rio Estige… ela foi queimada, e a-agora... ela... ela tá amaldiçoada, a alma dela vai ser amaldiçoada... — A criança tentava desabar em lágrimas, mas a frieza emocional manifestada pelos poderes que herdou de sua mãe o impedia de chorar. Desesperou-se por não conseguir, e ali, cada soluço que dava enquanto entrava em crise por pânico fazia seu pequeno corpo doer em dores agudas: aquilo era uma tortura para uma criança que sentia a necessidade de expressar sua dor.

Despoina observava a aflição de seu filho, ela conseguia sentir o desespero e o desamparo que a criança sentia. E ali, a deusa teve ciência de que o pequeno pensava estar sozinho, órfão no mundo, o que a fez ficar aflita, pois tudo era culpa dela.

— Por minha causa, as pessoas da cidade morreram..., mas por que elas não foram ajudar?... — Ikarus se perguntava enquanto começava a perder suas forças, a dor lhe desconcentrava. O pequeno só ficou em silêncio quando ergueu o olhar, pois viu algo que ele jamais esqueceria em toda sua vida.

Theminaris sentia o coração acelerar, aflita pelo trauma que nitidamente causara no filho. Aquela deusa sanguinária, vingativa e impiedosa via a indignação do seu filho e sentia-se no lugar dele. Ela conhecia o sentimento de estar só, o sentimento da perda do controle. A infância de Ikarus fora manchada por sangue, profanada pelas consequências da linhagem que ele carregava, assim como Theminaris carregava o fardo de ser fruto de um abuso e, consequentemente, abortada, odiada, rejeitada e amaldiçoada por sua existência.

A deusa se ajoelhava na neve, ela não sabia ao certo o que deveria fazer, mas se lembrou de que, no passado, Themis a aninhava quando ela se perdia em seu próprio caos.

E, assim, a deusa trouxe Ikarus para perto de si, abraçando o semideus com carinho. Uma delicadeza tão grande quanto o amor que sentia pelo filho. A deusa afagava os cabelos do pequeno enquanto o confortava.

O consolo materno fez com que Ikarus desabasse em choro, derramou lágrimas, o conforto e segurança era o que aquele pequeno ursinho desgarrado precisava no momento, o abraço e o amor da deusa se fizeram notórios, envolvendo-o por completo.

— Me perdoe por não chegar a tempo, eu tive problemas... mas agora estou aqui por você... — Despoina disse, levantando Ikarus do solo em seu abraço, segurando-o no colo. O garoto soluçava.

— Eu vou ficar sozinho? — Ikarus perguntou, entristecido, pensando em como seria voltar para Oymyakon depois do que fez. A casa dele fora queimada, não tinha nem mesmo onde morar. Theminaris sentiu seu coração se partir com a dor do filho, mas olhou nos seus olhos para passar a total confiança que ela podia.

— Não, você nunca mais vai estar só. Vou te ensinar a sobreviver, você viverá como um deus, abandonará o mundo mortal. A partir de hoje começará a sua jornada. — Despoina abraçava novamente o semideus; uma chuva de flocos de neve rodeava o corpo dos dois, fazendo um vórtice de gelo.

A deusa decidiu quebrar códigos e infringir leis, desafiando o destino ao tomar tal decisão.  A criação de um semideus por uma divindade era estritamente proibida devido a uma série de riscos associados aos danos irreparáveis que o semideus poderia causar no mundo mortal, especialmente se ele se tornasse caótico, o que era extremamente provável.

No entanto, não havia mais o que ser feito, o descontrole e a fúria de Ikarus dizimaram toda uma cidade, tendo aproximadamente quinhentas pessoas mortas. Despoina sabia que, se não levasse seu filho, alguma organização que intermediava entre o mundo mortal e divino o levaria, ou pior, mataria o semideus. Ela não iria permitir isso.

O coração de Ikarus começava a se acalmar, o abraço de sua mãe o confortava naquele momento de agonia, luto e tristeza. O pequeno apertava a mãe, retribuindo o gesto enquanto engolia o choro.

Ele sentia uma vibração por todo seu corpo, aquela era a energia divina da deusa se entrelaçando à energia de Ikarus. O semideus via os flocos de neve rodeando-os, sentindo o vento gélido agradável no rosto, tudo começava a desaparecer.

Theminaris se teletransportou com seus poderes para seus domínios, em algum lugar no mundo onde o clima frio predominava. Ikarus foi levado para uma jornada sem volta, pois...

 

As engrenagens do destino já giraram há muito tempo...

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